“Precisamos, com urgência, repensar o nosso modelo de escola”, defendem especialistas
Escola curitibana que há quatro anos abandonou o modelo “turma – sala – professora responsável” defende o aprendizado por meio do brincar
Uma escola sem turmas organizadas por idade, sem “sala da turma” e sem “professora da turma”. Assim é a Interpares Educação Infantil, localizada no bairro Água Verde, em Curitiba. Há quatro anos a diretoria da instituição optou por promover aprendizagem a crianças de zero a seis anos por meio de brincadeiras fora de sala de aula. “Se visitarmos escolas de educação infantil por todo o país, veremos crianças muito novinhas passando horas – muitas vezes o dia todo – dentro da mesma sala. É esse formato que desejamos deixar no passado”, conta a coordenadora pedagógica, Caroline Brand.
Nessa transformação, Caroline tem a parceria das irmãs Dayse e Deyse Campos, que são diretora e consultora psicopedagógica da Interpares, respectivamente. “Lutamos por uma nova escola, diferente daquela que nasceu com a Revolução Industrial”, diz Dayse. Segundo ela, é possível encontrar na literatura evidências de que a maioria das instituições educacionais ainda segue modelos construídos para atender demandas econômicas muito antigas. “Não é à toa que as férias escolares acontecem nos períodos em que ocorriam as colheitas”.
Com a Revolução Industrial, a escola se tornou parte muito importante da organização da comunidade, especialmente por conta do trabalho de pais e mães. Mas o ensino, em si, era menos debatido. “Mas após a Segunda Guerra Mundial, pensadores de todo o mundo passaram a questionar os modelos. Foi quando se destacaram nomes como Jean Piaget (com a teoria do construtivismo), Lev Vygotsky (com o interacionismo) e Maria Montessori”, lembra Dayse.
Sob a influência desses pensadores, especialmente dos dois primeiros, surgiram as escolas sócio-interacionistas, como a Interpares. Muito apoiadas em linhas teóricas e concepções sobre o desenvolvimento humano, essas escolas valorizam a criança como parte ativa do aprendizado, assim como valorizam as relações que o aluno estabelece com tudo e todos ao seu redor, sem restringi-lo a uma única turma, uma única professora, uma sala, temas escolhidos por adultos e “hora marcada” para brincar (recreio).
A diretora explica ainda que essas novas correntes da educação começaram a chegar no Brasil apenas na década de 80 e que as escolas ainda estão, muito lentamente, modernizando o processo de aprendizagem. “A urgência em transformarmos nosso modelo de escola é quase uma unanimidade em todo o Brasil. Mas, para que isso aconteça, todos nós precisamos desconstruir as referências que temos da escola tradicional (aquela que vivemos nas nossas infâncias). E isso é muito difícil, tanto para pais, quanto para professores. Muitos não conseguem aceitar a educação organizada de outra forma”. Ela conta que a mesma transformação realizada na Interpares também vendo sendo motivada em escolas municipais de Curitiba, com os famosos “cantinhos” ou salas-ambientes.
A transformação na prática
Assim como não há o modelo “turma – sala – professora”, não existe na Interpares o famoso “dia do brinquedo”- que geralmente acontece às sextas-feiras, na maioria das escolas de educação infantil. Na Interpares, as crianças são convidadas a levar brinquedos todos os dias – e isso inclui triciclos, patins, skates e bicicletas. Elas também podem escolher os temas a serem aprendidos e de quais atividades participar. Os alunos se servem sozinhos no refeitório – sim, há um buffet de comida instalado na altura deles – e os mais velhos ajudam os mais novos sempre que preciso.
Por outro lado, a escola promove, a todos os seus alunos, de forma organizada e orientada, a aprendizagem em linguagem oral e escrita, matemática, natureza e sociedade e artes, além de aulas especiais de musicalização, teatro, capoeira, circo, psicomotricidade relacional e inglês. A parte nutricional também ganha atenção especial, com aulas de culinária e o cuidado para que, mesmo com a autonomia na hora de comer, as crianças tenham refeições saudáveis e equilibradas. Mas como garantir que os alunos receberão esses ensinamentos e cuidados, se são eles que escolhem o que fazer e quando fazer? A diretora explica:
“Nossos professores estão organizados por áreas do conhecimento, e não por turmas de alunos que conduzem. Quinzenalmente, eles planejam juntos atividades e brincadeiras vinculadas a suas áreas, que serão promovidas em um determinado período e pelas quais cada aluno deve passar pelo menos uma vez. No dia a dia, as crianças escolhem de qual brincadeira participar e é quase natural que, no final da quinzena, tenham percorrido todo o programa. Caso a criança decida não participar de determinada atividade, o professor deve rever sua prática e planejamento – e reinventar estratégias de ensino que sejam mais atrativas ao aluno”.
Todo esse planejamento é elaborado a partir de temas escolhidos pelas crianças. “Por exemplo: na volta das férias de julho, no ano passado, um aluno contou que viu a carcaça de um animal na chácara de um parente e trouxe para a escola uma parte daquele esqueleto. As crianças ficaram curiosas e resolveram que o tema do período seria esse: ossos. Então elaboramos todas as atividades a partir desse tema. Outros temas estudados recentemente foram os cogumelos, o sangue e o tempo. Atualmente, as nossas crianças estão descobrindo o mundo dos morcegos e das joaninhas. Tudo escolha delas”.
A avaliação do período não vem num boletim, marcado com Sim ou Não para coisas que as crianças são capazes ou não de fazer. As avaliações são feitas pessoalmente, em “rodas de conversa” com todos os responsáveis pela aprendizagem da criança: pais, professores, coordenadora pedagógica e diretora. “Para que possamos avaliar os estágios de desenvolvimento de cada criança, os alunos são divididos em grupos nomeados de Maternal 1, Maternal 2, Pré 1, Pré 2 etc., como nas outras escolas, mas isso não significa que as atividades sejam organizadas a partir desses grupos”, conta Dayse.
A diretora destaca ainda que muitas pessoas definem a Interpares como um lugar onde as crianças “ficam livres” e “desenvolvem autonomia”. Mas ela lembra que se trata de uma liberdade assistida e orientada, que coloca cada criança como protagonista de suas escolhas. “Buscamos promover aprendizagem crítica, solidária e transformadora, sem que os alunos precisem abrir mão de uma das coisas mais importantes da infância: brincar. Quanto à autonomia, ela também é ensinada com toda a supervisão e cuidados necessários”.
A teoria sócio-interacionista considera a criança como um ser cuja participação ativa no seu processo de aquisição de conhecimentos estimula trocas afetivas e cognitivas com outros pares. “É o que nós fazemos aqui todos os dias, permitindo que as crianças tenham experiências e vivências significativas, para que possam por meio do brincar construir pensamentos e alongar a inteligência”, finaliza a consultora psicopedagógica, Deyse Campos.