Estresse tóxico na infância: uma nova pandemia?

Estresse tóxico na infância: uma nova pandemia?

Dra. Gislayne Castro e Souza de Nieto (*)

A pandemia da Covid-19 mudou muita coisa em nossas vidas. Está difícil planejar a longo prazo. Vivemos um dia de cada vez e a realidade de algumas pessoas é a transformação da casa, que era um lugar de refúgio e descanso ao final do dia, em escritório e escola. A nossa relação com o nosso lar mudou, assim como as funções que ele tem atualmente.

Em um primeiro momento, entendemos isso como algo benéfico, que possibilitava o acompanhamento de perto do desenvolvimento dos nossos filhos. Porém, com essa “quarentena”, que já dura sete meses, entendemos que as consequências dessa nova forma de sobrevivência podem ser severas aos pequenos e envolvem sentimentos como estresse, medo, ansiedade e exaustão, em função da hiperconectividade.

Além da conexão o tempo todo, o convívio familiar excessivo acaba saturando qualquer tipo de relação. Pais sobrecarregados com acúmulo de funções, crianças e adolescentes com aulas remotas tendo que apresentar desempenho acadêmico satisfatório. Tudo isso no pior cenário possível: sem convívio social, sem atividades físicas ou, ainda, vivenciando a solidão mesmo que acompanhados dos familiares.

E o que essas experiências emocionais, nutricionais e de estresse vão deixar registrado nesta geração? Ainda iremos descobrir em alguns anos os reflexos da pandemia da Covid-19. Cientistas apontam para transformações epigenéticas desde a concepção e, principalmente, nos primeiros anos de vida. Por isso, muito tem se falado em estresse tóxico, que é quando a criança vivencia adversidades por um longo período, sem o apoio e segurança dos pais e/ou cuidadores.

Entendemos o estresse como algo que faz parte do desenvolvimento de todo o ser humano. Em dose moderada ele impulsiona, transforma e ajuda na adaptação às mudanças. No entanto, estamos vivenciando um período de estresse contínuo. Estamos em constante estado de alerta, com descarga de adrenalina e alterações hormonais frequentes, sem possibilidade de recuperação do corpo e da mente, sem apoio, consolo ou estímulos corretos para o caminho da resiliência.

Esse tipo de exposição prolongada ao estresse é considerado tóxica, porque pode alterar o cérebro da criança e interromper o seu desenvolvimento, especialmente durante os períodos mais sensíveis do crescimento infantil. Além disso, especialistas afirmam que o estresse tóxico pode desencadear transtornos depressivos, problemas de comportamento psíquicos, alteração na imunidade, aprendizado, humor, sono e apetite.

Por isso, se você perceber algumas mudanças de comportamento como agressividade, desobediência, nervosismo ou mesmo que a criança está muito isolada, chorando com frequência, sem sono e com alteração no apetite, é importante ficar atento e estar preparado para tomar atitudes.

Reveja hábitos de comportamento dentro de casa, pois é natural que os filhos repliquem as atitudes dos pais e até mesmo os medos. Organize uma rotina saudável para sua criança, para que ela tenha tempo para brincar, estudar e também consiga descansar, sem fazer nada. Seguir esse cronograma deixará a vida da família mais organizada e feliz. Saiba que a partir do momento em que a criança sente que está recebendo atenção e tem sua vida estruturada, os efeitos negativos serão amenizados.

Todos temos a ganhar com isso, não é? Que tal começar a colocar em prática hoje mesmo?

Mantenha a rotina própria da criança com horários regulares para acordar, comer, tomar banho e dormir pode ajudar a diminuir estresse. A alimentação deve ser equilibrada e devemos, como adultos, optar por alimentos mais saudáveis à mesa, com pouco industrializados e açúcares. Privilegie o consumo de verduras, frutas e muita água.

Tempo de brincar deve ser priorizado, brincar de verdade, usar a imaginação, gastar a energia, bola, bicicleta, montar, pintar, ler livros, brincar de casinha, de cozinhar, de esconder, de cobra-cega... enfim, temos que reinventar o hábito de brincar em nossas casas.

O tempo de tela deve ser o mínimo possível, mas há que incentivar as conversas online com os avós, tios, primos, colegas de escola e amiguinhos. A criança tem que saber que os que a amam e se importam com ela ainda estão em seu meio de convívio, mesmo que de longe, por enquanto.

Evite comentários fatalistas e notícias pessimistas. Se alguém ficar doente ou até gravemente enfermo pela Covid-19 ou outra patologia, explique com naturalidade o que está acontecendo, com palavras suaves e acolhendo sempre o medo e angústia da criança. Pais, cuidadores e profissionais de saúde temos a obrigação do acolhimento, do cuidado, de tentarmos manter a serenidade e enfrentarmos com resiliência, da melhor maneira possível, este momento atual.

Temos que estar convencidos, que isto vai passar e teremos um novo normal, mas esperamos que seja um mundo melhor para nossas crianças!

(*) Médica cooperada da Unimed Curitiba, especialista em Pediatra e Neonatologia. Professora de Medicina das Faculdades Pequeno Príncipe e Universidade Positivo. Coordenadora médica da UTI neonatal do Hospital Brígida. Presidente do Departamento Científico de Neonatologia da Sociedade Paranaense de Pediatria